Samir Oliveira

Foi com o Vini, mas poderia ter sido com qualquer um de nós

Samir Oliveira
10 de agosto de 2017

O mês de agosto tradicionalmente concentra muitas formaturas de faculdades. Inclusive foi em agosto que eu também me formei, há exatos sete anos. Uma das melhores lembranças da minha vida. Infelizmente, para o psicólogo Vinícius Beccon e seu namorado Raul Weiss, esse tipo de cerimônia não será mais sinônimo de alegria e comemoração.

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Vini, como é conhecido (e como eu tomo a liberdade de chamá-lo), foi brutalmente agredido durante uma festa de formatura na madrugada do dia 5 de agosto em Porto Alegre. Seu crime? Ter recebido um beijo do namorado – amigo da formanda de uma turma de Direito da PUCRS

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A notícia sobre a agressão ao Vini me destroçou. Na noite anterior eu havia ido a uma formatura. E amanhã comparecerei em outra. Imaginar que um gesto de carinho nestes espaços possa causar uma reação violenta de algum parente dos meus amigos é apavorante.

Vini conta que foi agredido por um grupo de homens, dentre os quais estava o próprio pai da formanda. Além disso confiscaram seu celular e devolveram apenas no dia seguinte. Numa entrevista ao jornal Zero Hora, ele disse:

– Ouvi a palavra vagabundo, aí me pegaram pelas costas, me arrastaram pelo salão por uns dois metros, na frente de todo mundo, e me deram chutes e tapas. Enquanto davam tapas, tentei pegar meu celular, mas o pai da formanda arrancou-o de mim. Davam aqueles tapas de mão aberta e diziam: “Viado! Vagabundo!”. E o pai dela dizia: “Aqui não é lugar para vocês, eu te falei”. O Raul tentava chegar perto, me socorrer, senti a mão dele tentando me puxar, mas foi segurado. Disseram: “Cala a boca ou tu vais apanhar também”. Então eu vi que deixaram a mãe da formanda entrar no meio do grupo. Eu disse: “Vou processar vocês”. Vi que ela fez cara de apavorada. Depois eu soube que ela é advogada. Ela falou: “Larga ele”. Foi aí que me soltaram.

A partir daí, um roteiro infame foi traçado pela defesa do pai da formanda. Depois de alguns dias – certamente precisava de tempo para elaborar sua versão – o sujeito se pronunciou publicamente em entrevista à Rádio Gaúcha. Tentou desmentir as palavras de Vini.

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Já que palavras não podem apagar machucados, todos devidamente periciados em exame médico feito por Vini, o pai da formanda veio com uma desculpa inusitada para os ferimentos: “Ele tropeçou e caiu”

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Mas o peixe morre pela boca. A homofobia não é um comportamento racional e os homofóbicos não resistem à oportunidade de destilar ódio gratuitamente. Especialmente quando sabem que terão plateia. Ao final da entrevista, o homofóbico se entregou. Dirigindo-se ao jornalista David Coimbra, deu uma declaração que foi praticamente uma confissão de culpa:

– Queria pedir para o David que faça uma matéria sobre os homens héteros, trabalhadores, pais de família, que esses não têm representatividade nenhuma.

É exatamente este tipo de pensamento que fornece combustível a ações violentas contra a população LGBT. Não é à toa que o Conselho Regional de Psicologia e a Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB já se manifestaram em favor de Vini.

O psicólogo está processando o pai da formanda e busca identificar os outros agressores. Espero que seja feita Justiça. Que vivamos em um mundo onde as pessoas saibam que gestos de carinho não podem resultar em agressão.

Vini não tem nenhuma obrigação de doar qualquer recurso que possa vir a receber de uma sentença indenizatória. Mas já avisou publicamente, em seu perfil no Facebook, que fará isso. “SE houver qualquer processo de indenização que tiver resultado em sentença financeira, será TOTALMENTE doado a uma ONG de combate a homofobia ou discriminação de minorias”, garantiu.

O que aconteceu com o Vini Beccon poderia ter acontecido comigo. Ainda pode acontecer. Ou com qualquer pessoa LGBT. Por isso seu relato calou tão fundo em mim. Quando fecho os olhos e tento imaginar os minutos de horror que viveu naquela formatura, me lembro facilmente de um trecho do conto “Terça-feira gorda”, publicado por Caio Fernando Abreu no livro “Morangos mofados”:

A gente foi rolando até onde as ondas quebravam para que a água lavasse e levasse o suor e a areia e a purpurina dos nossos corpos. A gente se apertou um conta o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do outro. Tão simples, tão clássico. A gente se afastou um pouco, só para ver melhor como eram bonitos nossos corpos nus de homens estendidos um ao lado do outro, iluminados pela fosforescência das ondas do mar. Plâncton, ele disse, é um bicho que brilha quando faz amor.

E brilhamos.

Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço. Minha mão agarrou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos em volta. Ai-ai, gritavam, olha as loucas. Olhando para baixo, vi os olhos dele muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca molhada afundando no meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos.

Fechando os olhos então, como um filme contra as pálpebras, eu conseguia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção. Depois as Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos.