Os violentos ataques do Hamas – cujo nome é um acrônimo de Movimento de Resistência Islâmica em árabe – a civis israelenses no início do mês surpreendeu as forças de inteligência de Israel, mas não pode ser considerado súbito se olharmos para a história das disputas territoriais e políticas na região.
Imagens e relatos chocantes do que se sucedeu desde o primeiro ataque em 07 de outubro gearam revolta em todo o mundo diante da crueldade das ações consideradas terroristas. Há quem argumente, no entanto, que, historicamente, ações semelhantes já aconteceram em outros períodos também contra a comunidade palestina da qual o grupo extremista faz parte, apesar de não representar a maioria dos palestinos.

Para compreender melhor a dimensão do conflito , é preciso voltar no tempo e retomar a origem e histórico desta disputa.
Um dos marcos mais importantes dessa disputa é o início do movimento sionista, entre o final do século XIX e início do século XX, que defendia a autodeterminação do povo judeu e um Estado nacional judaico no território onde existiu o antigo Reino de Israel. No local, porém, já estavam os palestinos, à época em poder turco-otomano. Sionistas começaram, então, a comprar algumas terras e assentar colonos judeus na região. “Essas primeiras levas de migração não foram um problema porque eram apenas cerca de 20 mil pessoas, mas o cenário ficou mais complicado a partir da Primeira Guerra Mundial, porque os britânicos estavam de um lado da guerra e o Império Otomano do outro. E para conseguir apoio na guerra, os britânicos fizeram acordos tanto com judeus quanto com árabes, acordo esses que não conseguiram cumprir porque eram incompatíveis: não era possível garantir um grande estado árabe e assentar os judeus lá na Palestina”, explica Denise De Rocchi, doutora em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa sobre Relações Internacionais do Mundo Árabe (Nuprima/UFRGS).
Ou seja, a noção de um estado nacional não existia na região até a Primeira Guerra, que ocorreu de 1914 a 1918, quando os otomanos foram, então, derrotados por França e Reino Unido. Com a queda do Império, a região do Levante foi dividida entre os vencedores, exceto pela Turquia, e os britânicos ficaram com a Palestina, um território multirreligioso que, naquele momento, era de maioria muçulmana, mas que também abrigava cristãos e judeus.
Mas ao contrário do que os franceses fizeram na Síria e Líbano, o Reino Unido manteve o território com status indefinido.
Enquanto isso, a perseguição aos judeus na Europa aumentou imensamente durante a Segunda Guerra e, consequentemente, na tentativa de fugir do que viria a ser o Holocausto, aumentou também a migração para a região da Palestina. Neste contexto, os britânicos tentaram limitar a entrada e manter o controle do território, estabelecendo um número de cotas de migração, o que provocou mais divergências e inflou movimentos mais radicais que queriam a saída do Reino Unido do comando.
Mesmo com a limitação, porém, duas identidades passam a colidir na região a partir do aumento da migração: a dos árabes, formada por muçulmanos, principalmente, cristãos e, posteriormente, pela emergente identidade palestina; e a dos judeus. E a disputa se intensificaria a partir da criação do Estado de Israel após o fim da Segunda Guerra.
A criação do Estado de Israel
Em 1947, a Organização das Nações Unidas (ONU), presidida pelo Embaixador brasileiro Oswaldo Aranha, aprovou o Plano de Partilha da Palestina, que consistia em dividir o território em dois Estados: um judeus e outro árabe. Sendo que as áreas de Jerusalém e Belém permaneceriam sob controle internacional. A proposta era destinar 53% do território aos 700 mil judeus que viviam na região e 47% para 1,4 milhão de árabes. Foram 33 votos a favor do Plano, 13 votos contrários, 10 abstenções e uma ausência. A Agência Judaica aceitou a resolução e os países da Liga Árabe se opuseram.

Em 14 de maio de 1948, foi declarada a Independência do Estado de Israel, já em meio a uma guerra civil entre árabes e judeus. Egito, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano e Arábia Saudita atacaram o novo país em rejeição ao Plano de Partilha da ONU. Para os israelenses, é a Guerra da Independência, para os palestinos, é a Nakba, ou A Catástrofe.
Esse confronto terminou com um acordo de armistício depois de forças judaicas desbaratarem exércitos árabes e ampliarem o domínio sobre o território. O restante do mapa foi ocupado pela Jordânia, que anexou a Cisjordânia, e pelo Egito, que anexou a Faixa de Gaza. Milhares de judeus foram expulsos de países árabes e a ONU estima que mais de 700 mil palestinos foram expulsos de suas casas e tornaram-se refugiados.

A Nakba é lembrada pelos palestinos todos os anos no dia 15 de maio, quando eles saem às ruas com chaves que representam as chaves das casas das quais foram expulsos há 75 anos e para as quais nunca puderam retornar. Mas o final da guerra em 1949 não seria o fim dos conflitos.
Em 1967, usando como justificativa a movimentação militar de forças árabes nas fronteiras, Israel dá início a uma ofensiva contra Síria, Egito, Jordânia e Iraque e que ficaria conhecida com a Guerra dos Seis Dias. Israel derrotou os países árabes e tornou-se uma potência na região, ampliando ainda mais o território, que agora incluía as Colinas de Golã (controle dividido com os sírios), a Cisjordânia e a península do Sinai (controle dividido com os egípcios). Além do controle de Jerusalém. Há outro resultado, no entanto, produzido por esse conflito: mais 350 mil refugiados palestinos, novamente expulsos e rejeitados por alguns países árabes.
Há décadas, árabes acusam sionistas pela expulsão dos palestinos em 1948 enquanto israelenses dizem que os países árabes pediram a saída dos palestinos. Ainda hoje, mais de 5,9 milhões de refugiados palestinos vivem em acampamentos na Jordânia, Gaza, Cisjordânia, Síria, Líbano e Jerusalém Oriental, segundo informações da ONU.

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A PAZ É POSSÍVEL?
As perguntas principais neste momento em todas as partes do mundo são quando e de que forma pode-se chegar à pacificação dos conflitos naquela região. Denise De Rocchi lembra, porém, que, como aconteceu na luta contra o colonialismo em vários territórios, nem tudo foi feito de forma pacífica. “Em muitos locais perceberam que só através da negociação política não estavam conseguindo seus objetivos. Então, quando parte da população se sente alijada de seus direitos, não consegue ter participação política de outra forma, acaba usando o caminho da força, da violência, para conseguir derrotar o outro grupo e atingir objetivos”, explica a pesquisadora. Ela acrescenta que em muitos países foi necessário firmar um acordo que permitisse baixar as armas e incorporar o grupo beligerante nas conversas. Como na Irlanda com o Exército Republicano Irlandês (IRA), na Espanha com o ETA (Pátria Basca e Liberdade) e na América do Sul com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que permitiram que anistiados pudessem participar das negociações.
Organizações ligadas a direitos humanos e assistência humanitária temem que o governo de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, possa insistir em uma espécie de ataque em massa na Faixa de Gaza em represália ao Hamas e cause ainda mais mortes e a expulsão da população fixa da região. O entendimento desses mecanismos é que o do poderio militar e a tentativa de aniquilar o inimigo só prolongue o ciclo de violência. “Tem também uma falta de mecanismos no cenário internacional para forçar a implementação dos acordos realizados. A gente já está vendo um aumento do preconceito e da violência física ou verbal contra pessoas identificadas como palestinas e israelenses. Isso não acontece só no local dos conflitos, mas também em outros países onde essas pessoas estão vivendo e estão nessa diáspora. Temos todo um estereótipo sobre árabes, sobre a população islâmica, sobre a comunidade judaica, coisas muito anteriores a esses conflitos e que agora tem uma faísca que faz isso emergir nesse momento”, acrescenta a pesquisadora Denise De Rocchi.
Mesmo antes desse conflito, o Índice de Opinião Árabe de 2022, pesquisa realizada no segundo semestre do ano passado com mais de 33 mil pessoas em 14 países árabes pelo Centro Árabe de Pesquisa e Estudos Políticos em Doha, Catar, apontou que 76% das pessoas ouvidas entendem que a questão política-territorial na região é um problema de todos os árabes e não só dos palestinos. Dos que responderam ao questionamento, 84% disseram que se oporiam ao reconhecimento diplomático de Israel por parte de seus países. Mais do que isso, 38% consideram Israel uma ameaça à segurança do mundo árabe e 20% apontaram os Estados Unidos como um perigo. O motivo é a vinculação do desrespeito a acordos territoriais firmados e que não são cumpridos.
O estudo mostra que o conflito vai muito além de uma disputa e um risco para palestinos e israelenses. “Quando o conflito é analisado na perspectiva histórica, percebe-se que o colonialismo prejudicou a região. Ao invés de criar um entendimento, fomentou a disputa entre as partes. E nota-se também a fragilidade dos palestinos, que encontraram menos apoio e respaldo na comunidade internacional. O apoio dos EUA à política israelense tem um grande impacto. Hoje se vê que o acordo de territórios não foi respeitado e sem que haja sanções que façam com que o governo israelense cumpra esses acordos e distensione a situação. Há medo da violência, mas isso também acabou sendo capitalizado pelo governo do Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, para ele seguir com essa política que agora está mostrando que tem um esgotamento, que não resolve o problema. Então fica Israel com preocupação constante com segurança pelas relações frágeis com todos da região”, analisa Denise De Rocchi.
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O PAPEL DO BRASIL NA GUERRA
O Brasil é um dos países que mais acolheu populações árabes no mundo e também tem uma comunidade judaica muito numerosa. Além disso, tem capacidade e qualidade diplomática reconhecida, sendo que sempre participou das discussões em órgãos multilaterais e reivindicou participação em negociações. O país costuma ser aceito como mediador por não se envolver no conflito tomando parte por um dos lados, mas negociando a paz. “Estamos numa segunda onda de guerra que sacode a opinião pública brasileira: teve a questão da Ucrânia e agora de novo. Algumas pessoas acham que a forma de solucionar o problema é tomar um dos lados, mas a diplomacia tenta colocar as duas partes para conversar na mesa de negociação, sem se posicionar. Às vezes, vendo cenas tão chocantes, as pessoas ficam revoltadas e querem uma resposta dura e imediata contra os responsáveis pelo que elas estão vendo,”, explica a professora. Mas não é tão simples.
Imagem de capa: Cena em Khan Yunis, na área de Gaza, no sul da Palestina, mostrando uma família refugiada em sua casa improvisada, entre 1948 e 1949. Foto: UN Photo

