Reportagens Especiais

A liberdade de não colocar vidas em risco

Geórgia Santos
7 de agosto de 2023

 

 

Brasil registra aumento em mortes no trânsito enquanto, no Congresso, tramitam propostas para flexibilizar a legislação em nome da liberdade

Há dois anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou, em Genebra, a Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2021-2030. O objetivo é prevenir ao menos 50% das mortes e lesões no trânsito até 2030. Mas faltou uma palavra no título da ação proposta pela OMS. Esta é a Segunda Década de Ação pela Segurança no Trânsito.  A Primeira foi lançada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2010 com a meta ambiciosa de conscientizar os países a adotar medidas e reduzir também em 50% a mortalidade em rodovias. Naquela ocasião, entre 2011 e 2020. Qual não foi surpresa, portanto, quando o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou, em agosto deste ano, o “Balanço da 1ª década de ação pela segurança no trânsito no Brasil e perspectivas para a 2ª década” com a informação de que o Brasil registrou um aumento de 13,5% em mortes no trânsito entre 2010 e 2019. A taxa de mortalidade por 100 mil habitantes cresceu 2,3% em relação à década anterior. Os acidentes com motocicleta puxam a fila do crescimento das mortes.

A pesquisa foi realizada pelos pesquisadores Carlos Henrique Carvalho e Erivelton Pires Guedes a partir de dados do Datasus, plataforma do Ministério da Saúde disponível para consulta. Além disso, eles utilizaram informações de ocorrências registradas pela Polícia Rodoviária Federal (PRF).


Eu não dirijo. E isso se deve às estatísticas. Não que eu não dirija porque determinado estudo aponte para determinada tendencia, e sim porque minha mãe e um querido amigo se tornaram estatísticas. Foi em 1996, eu tinha oito anos e estava ansiosa pela chegada dela enquanto meu pai preparava o churrasco que ele sempre assava para esperá-los. Naquela época, minha mãe era prefeita da cidade em que nós morávamos e ela e o então vice-prefeito, o amigo querido, viajavam o tempo todo para a capital. Eles deveriam chegar a qualquer momento.

Nós tínhamos nos mudado para aquela grande há poucos meses. Foram anos de construção para eu, finalmente, poder brincar no sótão. Eu adorava aquele lugar. O problema é que eu ficava isolada. Então, sempre que eu ouvia um barulho que poderia significar que eles estavam chegando, eu descia as escadas correndo e passava feito um furacão pelo seu Jorge. Ele achava graça e ria.

Mas foi ficando chato. E estranho. O tempo foi passando e nada de eles chegarem. Até que o telefone tocou. Meu pai atendeu. O semblante mudou. Ele manteve a calma, mas encheu os olhos de lágrimas.

 

“Mas tu tá bem? E o Nelcides? Tenta ficar tranquila, eu falo com eles.”

 

Eu não entendi o que havia acontecido. Ou não queria entender, porque eu era bem esperta. De todo modo, arranquei o telefone da mão dele e perguntei se ela tava quase chegando. Um clássico. Ela estava chorando, mas tentou se recompor para não me preocupar. Enquanto ela me explicava que eles haviam se envolvido em um acidente e que demorariam para chegar, meu pai me olhava com tristeza e carinho.

Ele então ligou para a família do Nelcides. Nelcides Tecchio era o nome dele. Um tipo bonachão que tinha o hábito de ajudar muita gente, principalmente levando os doentes para consultas em outros municípios. Ele mexia na canela enquanto falava e me ensinou a tomar sete goles de guaraná quando estivesse com soluço. Os quatro filhos eram doidos por ele. Mas, ao telefone, meu pai não falou no passado, como eu faço agora.

Em pouco tempo, minha casa começou a encher de gente. Mas encher mesmo. Eu falo de, sei lá, cem pessoas. Talvez mais. Assim eu fui entendendo que era grave. Eu desconfiei quando vi um adversário político da minha mãe chimarrão na nossa cozinha. Mas só tive certeza quando ela chegou.

Eu nunca vou esquecer daquela cena. Ela desceu do carro com muita dificuldade. A cabeça estava enfaixada e o tailleur de linho azul escuro estava rasgado e ensanguentado. Ela bateu a cabeça no parabrisa mesmo estando de cinto de segurança, isso fez com que o peito dela se abrisse e as costelas quebrassem. Ela tinha sangue, pontos e curativos por todos os lados. A meia-calça cor de gelo estava vermelha. O sapato da mesma cor da meia, antes e depois. Foi só naquele instante que ela verbalizou que o amigo querido havia falecido. Depois daquele dia, foram meses de um luto intenso e de uma recuperação lenta.

Isso aconteceu há 27 anos e há 27 anos eu carrego esse medo. Ir para a estrada é um suplício, algo incompreensível para o meu avo, um caminhoneiro que amava a profissão. O problema é que as estatísticas, as benditas estatísticas, reforçam a sensação de insegurança que me acompanha há tanto tempo.


 

Em dez anos, 392 mil pessoas perderam a vida em acidentes de trânsito no Brasil

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Os autores optaram por deixar o ano de 2020 de fora em função da rotina atípica ocasionada pela pandemia da Covid-19, algo que poderia justamente falsear os números. O resultado foi que no Brasil, entre 2010 e 2019, 392 mil pessoas perderam a vida em acidentes de transporte terrestre, incluindo atropelamentos, ocorrências com bicicletas, motocicletas, automóveis, caminhonetes, caminhões, ônibus, veículos de serviço e fora de estrada. As regiões Nordeste e Norte concentraram o maior crescimento do número de mortes, com cerca de 45% de aumento. Os acidentes com motocicleta puxam a fila do crescimento no número de óbitos. As mortes de usuários de motocicleta cresceram cerca de 150% em relação à década anterior.

O governo passado divulgou, em 2021, que houve uma redução de 30% no número de mortes por acidentes, mas o pesquisador Carlos Henrique Carvalho, um dos responsáveis pelo estudo do Ipea, indica que a discrepância acontece, provavelmente, em função de uma divergência de metodologia.

“Houve uma queda na taxa de mortalidade por 100 mil habitantes a partir de 2014. Isso ocorreu muito em função do desaquecimento da economia. E em 2020 [ano que foi excluído do levantamento do Ipea justamente por ter sido atípico] começou a pandemia, que reduziu bastante o volume de tráfego e circulação de pessoas e mercadorias. E isso teve impacto. Mas na pesquisa, comparando as duas décadas, a gente viu que a mortalidade subiu. Na primeira década houve 346 mil mortes e na segunda década houve 392 mil. Ou seja, o número de mortes continua subindo”, diz.

A análise das mortes por faixa etária mostra outros números que são assustadores. Por exemplo, pelo menos um terço é formado por jovens de até 15 anos. E os acidentes com motocicletas respondem por cerca de 44% dos óbitos na faixa de 15 a 29 anos. E como se não bastasse o horror da violência, essas ocorrências ainda geram custos superiores a R$ 50 bilhões por ano. Isso gera forte impacto na economia por conta dos gastos com a previdência e redução de renda das famílias atingidas, além dos eventuais altos custos hospitalares e danos patrimoniais.

O Painel CNT de Consultas Dinâmicas dos Acidentes Rodoviários 2022 mostra, a partir de análises de ocorrências em rodovias federais, que somente em 2022 houve 64.447 acidentes, sendo 52.948 com vítimas (mortos ou feridos). No período acumulado de 2007 a 2022, foram 1.982.059 acidentes, sendo 970.674 com vítimas. Quase um milhão de pessoas ficaram feridas ou perderam a vida. 

Somente em 2022, 5.432 vidas foram perdidas nessas rodovias. Se olharmos para o período acumulado, estamos falando da morte de 110.215 pessoas. A rodovia com o maior número de acidentes no ano passado foi a BR-101, onde foi contabilizado um total de 9.079 acidentes com vítimas. Em relação ao número de mortes, a BR-116 é a rodovia em que mais se morre. Somente em 2022 foram 640 vidas perdidas nesta rodovia.

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O custo anual estimado dos acidentes ocorridos em rodovias federais no Brasil chegou a R$ 12,92 bilhões em 2022

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Dados da PRF, responsável pela fiscalização e controle do trânsito em rodovias federais em todo o país, mostram que a principal causa dos sinistros nessas rodovias é a falta de atenção ou reação dos motoristas, motociclistas e pedestres (36% das ocorrências). Essa informação é reafirmada pelo levantamento da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), que indica que o que mais causa acidentes é a reação tardia ou ineficiente do condutor, com um total de 8.065 acidentes (12,5% do total). E a principal causa de mortes é transitar na contramão – provavelmente em ultrapassagens -, com um total de 753 ocorrências (13,7% do total).

Foi essa a causa do acidente que vitimou o Nelcides, lá em 1996. O motorista fez uma ultrapassagem em local indevido e não havia acostamento. Os carros colidiram de frente e a vida de muitas pessoas mudou para sempre a partir daquele momento.

Os estudos mostram consistentemente  que as questões comportamentais estão associadas à maioria dos acidentes. Além dos problemas já citados, ainda se observa desobediências das regras de trânsito (14,4%), excesso de velocidade (10%) e uso de álcool (5%), lembrando que as últimas duas também são desobediências. O principal tipo de ocorrência é a colisão frontal, responsável por quase 40% das mortes no trânsito.

O levantamento do Ipea também aponta para essa direção. “A pesquisa mostrou claramente que as questões comportamentais são as principais causas para a ocorrência desses sinistros. Desobediência das regras, excesso de velocidade, uso de drogas e álcool e falta de atenção responderam, nos dados da década analisada, por dois terços das causas de acidente”, explica Carlos Henrique Carvalho.

Os recursos para a promoção de políticas públicas de redução da mortalidade no trânsito, em geral, tiveram contingenciamentos para formação de superávit primário, acentuados a partir da crise econômica iniciada em 2014. O Fundo Nacional de Segurança e Educação no Trânsito (Funset), oriundo de 5% da arrecadação das multas de trânsito e destinado à promoção de medidas de segurança e campanhas educativas, tiveram corte de 75% em relação ao total arrecadado no período. Além disso, os recursos do seguro DPVAT (Danos Pessoais por Veículos Automotores Terrestres), dos quais 45% são destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS) para compensação das ocorrências com atendimento hospitalar das vítimas de trânsito e 5% para financiar medidas do Sistema Nacional de Trânsito (SNT), foram fortemente reduzidos e depois zerados. Já os recursos da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) sobre combustíveis, destinados aos investimentos em infraestrutura viária, foram reduzidos e posteriormente zerados para manter o preço dos combustíveis.

Marc Ferrez/ Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles. Avenida Central na altura da Rua do Ouvidor, com rua Miguel Couto, Rio de Janeiro, c. 1906. Negativo de Vidro.

De uma maneira perversa, acostumamo-nos a esse tipo de informação. A nossa rotina não é alterada pelo fato de que a gente sabe que o transito no Brasil mata mais que guerras ou mesmo que morre mais gente nas estradas do que por arma de fogo. Aliás, sequer conseguimos dissociar os carros da nossa rotina. Mas nem sempre foi assim. No final do século XIX, as pessoas andavam a pé. E para todos os cantos. Os pedestres compartilhavam as vias com bondes, carroças e bicicletas até que, em 1891, o primeiro carro chega ao Brasil pelas mãos do pai da aviação. Não é uma piada, tampouco confusão. Santos Dumont trouxe de Paris um Peugeot Type 3 e saiu a rodar pleno Estado de São Paulo.

Em uma velocidade bastante diferente do que o século XXI impõe, o primeiro acidente de carro só aconteceu seis anos depois e no Rio de Janeiro. De novo, com figuras célebres envolvidas. O abolicionista José do Patrocinio, dono do jornal A Cidade do Rio, também retornou de Paris com uma novidade: o Serpollet.

 

“Trago de Paris um carro a vapor… O Veículo do Futuro, meus amigos. Um prodígio! Léguas por hora. Não há aclives para ele: com um hábil maquinista vai pelo Corcovado acima, garanto a vocês, pelo Corcovado acima, garanto a vocês, pelo Corcovado acima como um cabrito. Em meia hora faremos o trajeto do Largo do São Francisco ao Alto da Tijuca. Imaginem! É a morte de tudo, dos tílburis, dos carros, do bonde… até da estrada de ferro. Ficamos senhores da viação. É a fortuna.” Anunciou Patrocínio a seus amigos.

 

Na crônica “A era do automóvel”, o cronista João do Rio diz que “o primeiro (carro), de Patrocínio, foi motivo de escandalosa atenção. Gente de guarda-chuva debaixo do braço parava estarrecida, como se tivesse visto um bicho de Marte ou um aparelho de morte imediata.” Bem, não estavam tão distantes assim da realidade e o poeta Olavo Bilac parecia disposto a provar.

Bilac era amigo de Patrocínio e resolveu que queria dirigir o Serpollet. O poeta assumiu a direção e o jornalista, corajoso, sentou no lado do carona. Os dois saíram de Botafogo ruma à Estrada Velha da Tijuca, no Alto da Boa Vista. O carro chegou a impressionantes 4 km/h antes da  primeira curva e, rapidamente, Olavo Bilac perdeu o controle e bateu em uma árvore. Eles não se feriram, mas foi o fim do Serpollet. Não é preciso dizer que não havia escolas de direção disponíveis, exigência de uma carteira de habilitação ou demanda para testes psicotécnicos e motores. Da mesma forma que não é preciso esclarecer que Bilac nunca havia tido contato com um automóvel na vida. Ou seja, a crônica de uma morte anunciada.

Mas se o acidente no Rio de Janeiro servir como metáfora, o automóvel adentrou o mundo dos pedestres assustados sem pedir licença e mostrando a que veio. Não demorou muito para que acidentes, muita poluição e imensos congestionamentos passassem a fazer parte da rotina das grandes cidades. Um estudo do historiador Peter D. Norton indica que, nos Estados Unidos, o número de pessoas mortas anualmente no transito passou de cerca de 250 em 1905 para algo perto de 15 mil em 1922. O resultado da pesquisa de Norton está no livro Fighting Traffic: The Dawn of the Motor Age in the American City, publicado pela MIT Press e sem tradução para o português. Ali, ele mostra o processo turbulento que levou o automóvel a se tornar não apenas parte indissociável da vida dos norte-americanos como o elemento de prevalência nas ruas a despeito dos pedestres.

OUÇA . A imposição do automóvel produziu um custo muito grande na vida urbana, por Roberto Andrés, Urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Geórgia Pelissaro Santos · A imposição do automóvel

Era um futuro que ninguém poderia imaginar no início do século XX, quando o carro ainda era um item de luxo – inclusive na Europa. Afinal, o privilégio de dirigir estava restrito aos homens ricos. Jovens aristocratas, banqueiros e alguns industriais. No Brasil não era diferente, não à toa as duas ocorrências listadas acima envolvem nomes célebres da nossa história. Pois foi nos Estados Unidos, graças aos processos de automação industrial da Ford, que o carro se tornou um produto de massas. E a rápida difusão foi acompanhado da escalada de acidentes e mortes. Crianças de quatro a oito anos representavam o principal grupo de vítimas em muitas cidades. Na maioria, morriam atropeladas enquanto brincavam nas ruas, caminhavam pelos bairros ou de e para a escola.

O problema não era ignorado. À época, houve muita comoção e indignação contra os motoristas, que eram poucos, e contra o próprio carro. Não demorou a surgir grupos e eventos destinados à promoção da segurança no transito que organizavam passeatas e instalavam monumentos públicos em memória das vítimas. Esses comitês ainda foram responsáveis por campanhas publicitárias bastante agressivas, inclusive associando o carro ao diabo. Além disso, com o crescimento das frotas e dos acidentes, também cresciam os congestionamentos. Ou seja, no meio da década de 1920, a situação do automóvel nos Estados Unidos não era das melhores. Estavam na ascendente o tom e a força das campanhas de segurança, a indignação com acidentes e mortes, as buscas por redução de velocidade e restrição à circulação em áreas adensadas. Assim, entre 1923 e 1924 a venda de automóveis caiu pela primeira vez no país e despertou a atenção do setor automotivo.

No The New York Times, reportagens sobre o levante da nação contra as mortes causadas por automóveis

Rapidamente, a partir de uma atuação atuação organizada de associações industriais e câmaras de comércio, surge o lobby automobilístico, que, com relevante investimento financeiro, se estruturou para persuadir governos, mídia e Judiciário. Havia dois problemas a combater, um referente à justiça e outro que dizia respeito à eficiência. Os comitês de segurança apontavam o fato de que os poucos motoristas, a minoria, tirava o direito da maioria, os pedestres, de frequentar as ruas. Já os engenheiros de tráfego indicavam que os automóveis eram pouco eficientes em regiões muito populosas. A estratégia foi, então, virar o jogo, inverter a narrativa – onde já vimos isso antes?  Assim, o lobby automobilístico começou a discutir os problemas nos termos da liberdade. Política e de mercado.  E deu certo.

Junto ao discurso existia a vantagem de fomentar uma imensa cadeia econômica que envolvia as empreiteiras, os proprietários de terra, o mercado imobiliário e, claro, a indústria automobilística. Esse arranjo esteve no centro do New Deal na década de 1930 e, depois da Segunda Guerra Mundial, o modelo foi exportado para o mundo. No Brasil, essa ideia foi incorporada ao ousado Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, que transferiu o investimento em ferrovias para rodovias. E assim, o Brasil se transformou em um país que prioriza o carro.

No Brasil, até o final dos anos 1990, a principal vítima do trânsito era o pedestre. O Código de Trânsito Brasileiro (lei 9.503/1997) associado a campanhas educativas fez com que as mortes em acidentes de trânsito caíssem por alguns anos – as de pedestres caíram quase pela metade entre 1997 e 2000, mas isso não se repetiu em outras frentes, indicando que seria preciso a adotar medidas  estruturais. Especialmente diante do crescimento da frota, que aumentou a partir do século XXI com as políticas de incentivo à indústria automobilística do segundo governo Lula.  As consequências são os números que abrem essa reportagem.

A legislação evoluiu bastante desde a criação do novo Código e algumas ações foram bastante eficientes. Uma delas foi a implementação da lei seca (lei 11.705/2008), que entrou em vigor há 15 anos. Dados do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA) mostrou que as mortes em acidentes de trânsito causados pela mistura de álcool e direção caíram 32% no Brasil entre 2010 e 2021. Hoje se sabe, portanto, que a lei contribuiu para a redução de ocorrências e de mortes, mas foi muito criticada quando proposta. Quem era contra, usava um argumento que já vimos aqui: o da liberdade. É um argumento recorrente, afinal de contas, e que agora volta a ser usado.

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LIBERDADE?

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No último dia 24 de julho, o deputado federal Kim Kataguiri (UNIÃO-SP), membro do Movimento Brasil Livre (MBL) propôs uma nova alteração no Código de Transito. O PL 3616/2023 dispõe sobre a realização dos exames exigidos no processo de habilitação. Kataguiri entende que exames de aptidão física e mental e de vista devem ser realizados em regime de livre concorrência e que os cidadãos devem ter autonomia para escolher as clínicas. Que não devem se submeter apenas aos estabelecimentos credenciadas pelo Detran como determina a legislação atual.  Aliás, essa não é a primeira proposta de Kataguiri para o Código de Trânsito. Em 2020,  ele propôs acabar com as exigências de autoescolas no processo de emissão da CNH e abrir a porta para instrutores independentes. Nos dois casos, o objetivo é parecido. Segundo o texto mais recente, a ideia é “assegurar a liberdade de escolha do cidadão que pretende tirar ou renovar a carteira de motorista (CNH)”.

O PL ainda explica que o ato de pré-determinar as clínicas configuraria em reserva de mercado, algo que o “STF, guardião da nossa Constituição Federal, repudia”. Mas o argumento tresloucado da liberdade não para por aí. Na justificativa do projeto, ainda há menção a Ludwig Von Mises e ao que o autor denominou de “socialismo das guildas”.

“Em um sistema de cooperação social com base na divisão do trabalho, nada há que se identifique com o interesse exclusivo dos membros de algum estabelecimento, companhia ou setor, e que não seja também de interesse dos demais membros da coletividade (…)Não existem questões internas de qualquer guilda cujas soluções não afetem a toda a nação. Um setor da atividade econômica não está a serviço apenas daqueles que nele trabalham; está a serviço de todos… O esquema do socialismo de guildas e do corporativismo não leva em consideração o fato de que o único propósito da produção é o consumo. Há uma inversão total de valores; a produção torna-se um fim em si mesmo (…) a reserva de mercado é extremamente eficiente em restringir a oferta de serviços e, com isso, encarecer os preços ao mesmo tempo em que derruba a qualidade, pois a concorrência é extremamente restrita.”

Ainda se pode ler o seguinte: “Se a finalidade do exame de vista é auferir se a pessoa tem condições de enxergar enquanto dirige, pouco importa se o exame é realizado na clínica A, B ou C.” O nobre deputado esquece, porém, que a legislação vigente visa garantir a imparcialidade e impessoalidade dos exames que atestam a aptidão dos brasileiros para conduzir seus veículos, reduzindo a possibilidade de burla.

Tanto é assim que a Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet) publicou uma nota em que externa preocupação com a apresentação do projeto. “A vinculação das clínicas aos Departamentos de Trânsito Estaduais, regra atualmente em vigor, proporciona um controle mais rigoroso da qualidade dos exames e dos profissionais que os realizam, o que é de suma importância para a segurança e a saúde no trânsito”, explica. Essa prática assegura a isenção dos médicos peritos envolvidos no processo e evita conflitos de interesse. Segundo a Abramet, a possibilidade de redução do controle sobre os exames de aptidão física e mental pode resultar em um maior número de condutores e motoristas não aptos nas vias. Isso em um país cuja principal causa de acidentes em rodovias é a falta de atenção ou reação. Um país em que o comportamento dos envolvidos é determinante para a segurança no transito.

OUÇA . Por que os exames – físico e mental – são tão importantes? Por Ricardo Hegele, médico do tráfego e vice-presidente da Abramet

Geórgia Pelissaro Santos · Por que os exames – físico e mental – são tão importantes?

Além disso, a legislação atual garante acessibilidade universal. O vice-presidente  da Abramet, Ricardo Hegele, explica que as dependências tem que ter acessibilidade, tamanho apropriado e equipamento específicos. “Além do atendimento às normas técnicas, tem que ter acessibilidade aos sistemas informatizados de comunicação com o Detran e a guarda dos prontuários tem também essa necessidade especial. Existem resoluções e outras normativas que, frente a necessidade desse exame criterioso, considerando que esse exame é um ato pericial, ele deve ser realizado em local de atividade médica exclusiva pra esse tipo de procedimento. E devem ser distribuídos de forma imparcial e equitativa. Esses locais ainda tem fiscalização e vistorias”, explica.

OUÇA . A que riscos estamos expostos quando o condutor pode escolher quem vai fazer o exame? Por Ricardo Hegele, médico do tráfego e vice-presidente da Abramet

Geórgia Pelissaro Santos · A que riscos estamos expostos?

Isso significa que propostas como o PL 3616/2023 trazem risco à segurança. Hegele lembra que projetos similares já foram propostos antes, inclusive pelo último governo, e foram rejeitados pelo Congresso.

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CONDUTORES DESCOMPENSADOS

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De acordo com o Guia CNT de segurança nas rodovias, as ocorrências de acidentes nas rodovias do país são muito elevadas e há muitos motivos para isso. Destaca-se as condições do veículo, as condições climáticas e da rodovia e o comportamento do motorista. Em muitos casos, os sinistros não tem apenas um motivo. O Guia CNT exemplifica que “quando há falta de atenção por parte do condutor (comportamento do motorista) ao passar por um ponto crítico, como um buraco grande (condição da rodovia), pode-se perder o controle do veículo e ocorrer uma colisão ou saída de pista.”

Na perspectiva do “Visão Zero”, que é uma abordagem que entende que nenhuma morte no transito é aceitável, eventuais erros do condutor deveriam ter as suas consequências mitigadas por elementos da própria infraestrutura que alertam o motorista caso ele saia inadvertidamente da faixa, mantêm o veículo na via e absorvem os impactos. Infelizmente, o Brasil sobre com a falta de investimento na infra viária. Isso significa que se apenas 12% das vias são asfaltadas no país, segundo estudo da Confederação Nacional dos Transportes, é impossível pensar em contenções que “perdoariam” as falhas dos motoristas, evitando a ocorrência de acidentes ou minorando os seus efeitos. Ou seja,  a aptidão física e mental dos motoristas é ainda mais importante no Brasil, onde a reação tardia ou ineficiente do condutor é a principal causa de acidentes.

Quem melhor traduziu as características particulares da dinâmica social do trânsito no Brasil foi o antropólogo Roberto DaMatta, no livro Fé em Deus, Pé na Tábua, publicado em 2010. A partir de uma série de entrevistas com motoristas, motociclistas e pedestres, ele mostrou que muitos motoristas apontavam como solução para o trânsito mais fiscalização e punições para infratores, ao mesmo tempo que não consideravam deixar de realizar suas paradas em fila dupla, ultrapassagens em trechos proibidos, furadas de sinal e excessos de velocidade.

“Não há duvida alguma, como tem sido exaustivamente assinalado por especialistas nesta área, que o comportamento do motorista é o grande responsável – ao lado da postura dos pedestres, das vias por onde trafega e do veículo que dirige – pela maioria dos acidentes de trânsito no Brasil.”

“Quem tem fé em Deus é aquele mesmo sujeito que, sem dó ou piedade, enfia o pé na tábua”, disse DaMatta.


Mais de 25 anos depois, meu trauma me acompanha, é verdade. Mas não me impede de viajar de carro. Na última vez em que me aventurei a passar muito tempo na estrada – de carona, é claro -, embarquei em uma empreitada pelo interior do Rio Grande do Sul. E enquanto viajava de Pelotas a Bagé, a minha lista de viagem do Spotify me pregou uma peça. Eu ouvi a melodia conhecida e um apito de trem. Maria Fumaça, de Kleiton e Kledir. Eu adoro essa música. E, confesso, preferia estar a bordo de um trem de passageiros. Mas esse não é um ttado contra o automóvel, afinal, fiz meus 2 mil quilômetros planejados dentro de um carro muito querido. É apenas uma alerta e um lembrete de que as pessoas morrem na estrada.

Segundo dados do Guia CNT de segurança nas rodovias, a maioria dos acidentes ocorre nos finais de semana e em feriados, à noite e com mau tempo, quando há piores condições de visibilidade. A maioria dos acidentes é fruto de colisões e saídas de pista e a maioria das mortes resulta de colisões e atropelamentos. Ou seja, todo mundo que está na via está vulnerável, não apenas os ocupantes dos carros. Além disso, 66,0% da extensão das rodovias apresentam algum tipo de problema; 55,5% da extensão apresentam problemas no pavimento; 60,7% da extensão têm problemas de sinalização; 63,9% da extensão têm deficiência na geometria da via.Por isso, todo cuidado é pouco.

Antes de iniciar a viagem, o condutor deve se certificar de que a habilitação e os documentos do veículo estão válidos. Motoristas de veículos pesados devem, ainda, realizar  periodicamente exames toxicológicos. Para evitar a ocorrência de avarias durante a viagem, o condutor deve fazer as manutenções periódicas do veículo, assim como verificar o funcionamento de faróis, freios e limpadores de para-brisas, as trocas e a calibragem dos pneus e os níveis de óleo lubrificante e água. Também é importante que o motorista conheça previamente as condições das vias por onde vai transitar. Desse modo, deve planejar a sua viagem, analisando, dentre as rotas possíveis, aquela que apresenta as melhores condições – ou, caso haja apenas um itinerário, identificando as situações de perigo que pode encontrar nele.

Pra mim, especificamente, viajar de carro é aterrorizante, eu não vou negar. Mas não precisa ser assim se todos seguirmos as orientações de segurança e formos responsáveis e atentos ao que dita a legislação. Eu cumpro meu papel de carona afivelando o cinto de segurança e sendo absolutamente vigilante – jamais chata, claro que não – com relação à adoção de medidas preventivas. Ao meu lado, ninguém ultrapassa em local perigoso, ninguém dirige alcoolizado, ninguém burla a legislação do transito deliberadamente. Se o faz inadvertidamente, paga a multa correspondente sem discurso.

E fazemos isso com toda a liberdade que temos de não colocar ninguém em risco.